Entrevista | Milhanas: O fado como salvação (de um legado poético)
Com uma voz de timbre grave e sofrido, que narra as angústias da vida e a complexidade das emoções, (Carolina) Milhanas procura, incessantemente, a autenticidade e a essência das coisas.
Tendo encontrado a calmaria, num começo auspicioso — com o lançamento do primeiro registo discográfico, marcado pelo dom da palavra e pela alma da canção popular, associada à guitarra portuguesa —, atreve-se, agora, a desafiar os contornos (monótonos) do homogéneo, enveredando por caminhos, que encorajam e cativam.
Hoje, o futuro é dela.
Com apenas 3 anos, frequentaste o Musicentro dos Salesianos de Lisboa. Já descodificavas pentagramas antes de conheceres os preceitos do “á-bê-cê”?
[risos] Quase!
O Musicentro dos Salesianos de Lisboa é uma Escola incrível e liberal, que me proporcionou a oportunidade de explorar inúmeras vertentes, desde o Violino à Dança e ao Teatro, de participar num coro Gospel, e de integrar um combo de Jazz e Música Moderna — sempre muito bem acompanhada.
Embora, posteriormente, ter percecionado a rota ambicionada, foi uma experiência fantástica para o meu progresso.
Eleges Fausto Bordalo Dias como a tua maior influência. A devoção pela melodia desabrochou de que vontade ou propósito?
Honestamente, não sei [risos]. Porém, ter crescido com um pai, músico e produtor, interferiu, ainda que o empenho maior em determinadas componentes me tenha encurtado e delineado as opções.
Espontaneamente, concentrei-me a 100% em Técnica Vocal.
O fascínio pela composição é notório. Que papel detém uma criação, fruto, não só de vagas de inspiração, mas, igualmente, de um processo metódico na tua linguagem artística?
Eu adoro compor, não só as faixas que interpreto, como, também, as que ganham espírito próprio, nomeadamente a da Teresinha Landeiro, que me deixou mega orgulhosa do resultado. Durante o Curso de Escrita Criativa, a Luísa Sobral disse-me que não posso esperar pela ideia genial.
Se me sentar, diariamente, e escrever, o incentivo aparecerá. Enquanto que, antecedentemente, arrancava com a letra e a harmonia, em simultâneo — jamais as separava —, neste momento, é bastante natural.
“O fado não é uma canção ou um estilo de música. O fado é o próprio peso da vida”. Que carências colmatou a força da atuação?
Tenho imenso respeito pelo fado, mas não sou fadista.
Com o ruído ensurdecedor, que provém de um dispositivo, o silêncio é um luxo e a possibilidade de cantar a verdade é um bálsamo. Em concerto, as pessoas acreditam que serão resgatadas e consoladas, durante uma hora e meia, mas não imaginam que quem encontra refúgio… Sou eu.
“De Sombra a Sombra”, o oitavo melhor disco do ano eleito pela Blitz, subsiste de uma certa descrença. Consideras que o exorcizar de sentimentos conduz-te ao desapego do ego?
Apesar de podermos ser um agente de transição, naquilo que é a nossa “ilha”, somos ínfimos e levamo-nos demasiado a sério.
Contudo, o exercício humano de conjurar vivências possui, sem dúvida, um poder transversal, que necessito para concluir ciclos, como retrato em “Mundo”.
O tradicional, aliado a sonoridades digitais, surge do desafio constante de te superares?
Absolutamente. Categorizar a arte é, extremamente, perigoso.
Em conjunto com Rodrigo Correia, o long-play, que conta, cronologicamente, dores e lamentos, através de alusões líricas, nasceu descomprometidamente, em formato acústico, incorporando, posteriormente, uma especificidade mais eletrónica, com a produção do AGIR e do Jon.
Sinto-me, genuinamente, feliz.
“Eu de Prosa” relata o “abismo que foi viver entre querer ir e querer ficar”, tendo Amália Rodrigues como símbolo de alento e esperança, em que um dos seus célebres vestidos é o protagonista do videoclipe. O complemento visual com que te expões é um auxílio na transmissão eficaz da mensagem pretendida?
O tema explana uma fase obscura — um abismo, que descobriu consolo nas casas de fado, onde tudo mudou. Como agradecimento, assim que a peça chegou a estúdio, comecei a chorar baba e ranho. Carregava uma responsabilidade absurda… Que me salvou.
A herança literária define a roupagem dos teus temas. Porque é que, tendo o futuro em mente, não devemos esquecer o transato?
O passado conta-nos a história que nos trouxe até aqui e revela-nos os erros que não podemos cometer, consecutivamente.
Existem tesouros intemporais preciosos de cantautores, quebrando barreiras e percorrendo estilos e métodos, que, atualmente, adquirimos para seguir novas direções.
Afirmaste, numa entrevista, que a tua geração está muito atenta aos problemas do mundo. “Vivemos num tempo em que já não há mais tempo”?
Convictamente, afirmo que as dificuldades pesam na minha geração, quer esteja ou não desperta para a realidade envolvente. É cíclico. Portugal exige, paulatinamente, uma revolução — pacífica —, uma vontade e um movimento de mudança, uma vez que, com a abundante informação contraditória disponibilizada, torna-se difícil confiar.
A 13 de maio, estarás, pela primeira vez, em nome próprio, no Teatro Maria Matos. O que ansiar?
Acabou de esgotar!
Estou com um nervoso miudinho, não vou mentir [risos], mas super entusiasmada a preparar um espetáculo, que irá transcender expectativas.
O percurso de carreira que tens vindo a edificar é, afinal, reflexo de que personalidade?
Independentemente das circunstâncias… Sou Milhanas — coesa e coerente, sem a construção de uma persona ou o cálculo de audiências —, guiada por uma equipa maravilhosa, em grandes decisões.
Ao vivo, riu-me sistematicamente, apanho o cabelo, pergunto se estou bem [risos]. Entrego-me por inteiro, como se partilhássemos a mesma mesa de café.