Entrevista | Clara Não: A (des)construção de liberdades
Irreverente e de mente progressista, Clara (Silva) Não é uma das vozes portuguesas mais influentes, que carimba a raíz grijoense no traço cómico-amoroso empregue na crítica satírica declarada — (sempre) sem papas na língua ou hesitações —, enquanto canta Britney Spears nas horas vagas.
Desarmando equívocos sobre causas humanistas, relações saudáveis e brio pessoal, a postura ativista proveio, decisivamente, de um papel amarrotado, que vagueava pelas ruas de Roterdão — “well‑behaved women rarely make history” —, assumindo-se, agora, como uma mulher queer, que usufrui das múltiplas dimensões artísticas como um veículo de empoderamento, onde “orientações sexuais, genitais ou identidades de género“ não possuem representatividade.
Sendo reivindicativa, trocaste o “Silva” pelo “Não” como um grito de emancipação?
Inicialmente, introduzi uma brincadeira semântica — “Clara Não vai” ou “Clara Não faz”.
Contudo, à medida que fui ganhando coragem para expressar a minha opinião, o nome obteve o sentido pretendido.
Defensora do feminismo interseccional, utilizas a arma do humor (e da ironia) para desmontar preconceitos, discriminações e machismos, através do relato de experiências pessoais. O propósito a que te propões cumprir é reflexo de que vontade?
Anseio que — um dia — a luta pela equidade não seja necessária, desejando que, apenas, se conte que existiu um período em que, estupidamente, os indivíduos não a consideravam como primordial.
“Pecado é ser-se intolerante ao amor”. Que caminhos impulsiona a fé no combate ao estigma e à hostilidade?
É basilar entender-se que Deus passou de Vingador, no Antigo Testamento, para Defensor, no Novo Testamento, enviando o Seu único Filho para transmitir a mensagem. Considero inocente e descabido não se adaptar os ensinamentos à atualidade.
Estou extremamente farta do “aceito, mas não gosto” da Igreja e da incongruência da segregação. A crença deve ser de amor e não um favor de “nós, cishétero, aceitámo-vos, vocês, os outros”. A crença deve ser colo e abraço e não uma religião que propaga medo, culpa infundada e violência.
Consideras que o movimento é, ainda, vislumbrado com bizarria?
Lamentavelmente, sim.
Sendo presença assídua em Escolas Secundárias, denoto uma descrença geral, que emerge do raciocínio de que o voto desampara — porque as opções são fracas ou insuficientes.
Admito que as taxas de abstenção que poderão decorrer são uma preocupação, uma vez que a extrema-direita investe — com todo o gosto — no populismo.
Porém, a informação está à distância de um clique. Precisamos de menos preguiça e de mais noção.
Imersos num poço de algoritmos, scrolling, likes e partilhas (silenciosas), que carências apresenta a nova geração?
Julgo que o autocuidado e a gentileza com os outros encontram-se em escassez, sendo que os vínculos não se compõem, apenas, de mensagens, uma vez que só conhecemos efetivamente alguém, quando experienciamos o seu cheiro ou toque característicos.
Corremos um sério risco de ingressarmos numa era individualista, por não fomentarmos a criação de comunidades — um dos ingredientes da perigosa polarização de poderes políticos.

Após teres sofrido um burnout, aprender a descansar é um dos teus grandes objetivos. A recusa é um recurso prazeroso?
Antes do alívio, fui tomada pelo remorso [risos].
O mundo desloca-se tão apressadamente que a constante comparação — física e profissional — leva-nos a sentir que nunca estamos à altura.
Todavia, só ao aceitarmos que trabalhar exaustos/as não rende é que surge o verdadeiro êxtase de ler um bom livro ou de completar um sudoku.
“Miga, Esquece Lá Isso!”, um dos dez nomeados na categoria “Empowerment” dos prémios europeus “About You”, reúne “alguns dos melhores dilemas, desaires e bandeiras urgentes do quotidiano”?
Tendo surgido dos meus cadernos de bolso, do tamanho de um passaporte — dezenas e dezenas deles —, o livro é um abraço de carinho, pousado na mesinha de cabeceira, que adquiriu a sua versão 2.0 com a agenda “Vai Ser Desta!” — um ombro amigo de “conta-me como foi” e “estou aqui para ti”.
Ilustrar acarreta consequências?
Sem dúvida.
No entanto, é urgente abordar princípios LGBTQIA+, bem como questões étnicas, colonialistas e de género, com audácia e confiança, adaptando o discurso aos diferentes públicos.
Que legado ambicionas produzir na sociedade?
Almejo que, no futuro, se percecione o quão disparatado é — para o bem comum — denominarmo-nos de “antifeministas”.
Que formas detém o amor-próprio?
- Deixa de fazer fretes;
- Sê capaz de pedir ajuda;
- Aproveita o tempo sozinho/a, mas não recorras ao isolamento.
Pedras no caminho. E agora?
Apanha-as e edifica um T0, sem teres de pagar uma renda absurda por uma caixa de fósforos.
4 mandamentos?
- Água e protetor solar;
- “Não” é, igualmente, uma resposta válida;
- Prefere uma conversa AGORA;
- Comunicas os teus limites e não os respeitam? Vai embora!
Perguntas rápidas
Um livro?
“Notes to Self”, de Emilie Pine.
Referências?
Roxane Gay, Ruth Manus e Mary Beard.
Lugar predileto?
É segredo [risos], senão encontram-me lá.
O poder do diálogo é…?
A esperança pela paz.
Palavra favorita?
Marmita.