A No Bully chegou a Portugal em 2016 e, segundo a sua presidente Inês Andrade, a associação sem fins lucrativos tem conquistado o seu lugar no combate ao bullying. 20 de outubro marca o Dia Mundial do Combate ao Bullying e, neste âmbito, a Mais Educativa quis conhecer os detalhes deste projeto que se foca em ajudar jovens nos vários pontos do país.
ME- Quem são e qual é a missão da No Bully Portugal, numa perspetiva de presente e futuro?
IA- Somos uma associação sem fins lucrativos, fundada em 2016, com o objetivo de combater o bullying, criar um país sem bullying, onde as crianças e jovens se possam sentir felizes. Fazemos isto através de um programa, o Escola Com Empatia, que transmite formas de lidar com o bullying através da empatia.
ME- Como surgiu este projeto?
IA- A motivação vem já de algum tempo. Primeiro, por ter sido alvo de bullying, o que me marcou, mas também por, quando era mais nova, ter visto estas situações a acontecer à minha frente e nunca saber como lidar com elas. Sentia-me frustrada por não conseguir ajudar os meus colegas e essa perturbação ficou, até ao momento em que houve a oportunidade de trazer a No Bully para Portugal, um projeto que existia nos Estados Unidos. Com uma história e uma metodologia que já tinha sido criada. Foi assim “por acaso” que encontramos o projeto na internet, entramos em contacto para o trazer para cá e foi aceite. Tivemos uma formação nos Estados Unidos e foi lá que nos passaram a informação necessária para aplicar em Portugal.
ME- Por quem é constituída a equipa?
IA- Na direção estou eu, como presidente, faço a gestão da associação e também das questões ligadas à formação nas escolas. A vice-presidente é a minha mãe, Isabel Andrade, que é psicóloga e trabalha comunitariamente no contexto empresarial. Também faz formações, como por exemplo, sobre inteligência emocional e a questão dos conflitos. Sentiu que, apesar de não ter sofrido bullying enquanto era jovem, existem aspetos nos adultos que podem ser prevenidos e as pessoas podem ser mais desenvolvidas emocionalmente. Temos também a Raquel António que trabalha connosco há vários anos, é psicóloga e tem-se dedicado à investigação deste tema, mais especificamente o bullying homofóbico e o cyberbullying. Também é professora no ISCTE e acaba por ter um papel importante, uma vez que nós realizamos questionários às escolas para perceber os níveis de bullying que existem e como é que eles estão a evoluir. Para além destes elementos, temos várias pessoas que nos ajudam na implementação do projeto e das próprias formações, é o caso de psicólogos e professores de diferentes especialidades. No dia-a-dia, trabalham connosco, principalmente na dinamização de sessões, vários consultores em áreas especializadas, como a neuropsicologia, a pediatria e a psiquiatria. Nas áreas dos negócios contamos com a ajuda de profissionais em situações pontuais.
ME- Através de que atividades é que conseguem cumprir esse objetivo?
IA- Neste programa temos várias formações, dirigidas tanto a adultos – professores, pais, funcionários -, como para estudantes. O nosso propósito é que toda a comunidade escolar seja formada e saiba o que se deve fazer para combater comportamentos agressivos. Chegamos diretamente aos jovens através de sessões e trabalhamos com eles as suas competências e as suas relações. Incluímos ainda uma iniciativa de embaixadores que realizam atividades nas escolas, propostas e organizadas pelos alunos, desde iniciativas artísticas, debates, distribuição de panfletos e até dinâmicas em que os mais velhos ensinam os mais novos sobre bullying.
ME- Quais são os principais valores que trabalham juntos dos jovens?
IA- A empatia é sempre o nosso foco, ou seja, pretendemos que sejam eles a perceber o que os outros estão a sentir e qual o impacto que as suas ações têm nos colegas. Para além disso, procuramos transmitir que eles podem fazer alguma coisa de impactante e têm o poder de mudar as situações, sem precisar de esperar pela intervenção de adultos. Os jovens também têm ferramentas que podem utilizar para se ajudarem uns aos outros, sempre baseado em valores como a bondade e a interajuda.
ME- Primeiramente, o que é o bullying e quais são os comportamentos inerentes a este fenómeno?
IA- O bullying é um fenómeno que abrange comportamentos de agressão e consideramos que existem três condições para ser, de facto, bullying. Primeiro, tem que ser feito entre pares, ou seja, colegas de escola, irmãos, pessoas que pertencem à mesma faixa etária. Importa dizer que o termo não deve ser utilizado em situações entre professor-aluno, pai-filho, chefe-subordinado. As palavras servem para se usar corretamente, se não, perdem força. Outra questão, não há uma idade mínima ou máxima. Pode ser entre crianças, adolescentes e até entre adultos que, apesar de o nível hierárquico ser igual, por alguma razão, há um desnível de força e poder. Faz com que uma pessoa se sobreponha a outra, seja por ser mais forte fisicamente, seja por ter mais amigos, por ser mais popular e respeitado, seja porque a outra pessoa não se consegue defender. O comportamento tem que se repetir, ou seja, não é isolado no tempo. Há aqui uma exceção, em relação ao cyberbullying, quando é feita, por exemplo, uma partilha pública que expõe alguém e que será partilhada e comentada por muitas pessoas.
Ainda dividimos o bullying em quatro tipos, a questão do físico, o verbal que surge através de ameaças e que pode dar origem à exclusão social, e o cyberbullying que são todas as agressões que podem ser feitas através da internet e das redes sociais.
ME- Estamos a falar de idades, por si só, de risco devido às alterações que surgem nesta altura. Como se comunica o bullying com os jovens? Procuram que formas para os chamar a atenção?
IA- Tentamos que as coisas sejam divertidas. É um tema, obviamente, pesado, mas não precisamos de estar sempre a falar de uma forma muito triste. Por isso, tentamos fazer jogos e, acima de tudo, ouvir as crianças e jovens para perceber o que eles pensam sobre este assunto. Neste sentido, tentamos perceber como é que podemos ajudar a refletir e a desconstruir alguns preconceitos. Normalmente, eles já ouviram falar de bullying, mas nem sempre são bem informados, no que diz respeito ao que deve ser considerado bullying e o que se pode fazer para o combater. É a conversar com eles e, principalmente, a ouvi-los.
ME- Em traços gerais, como tem visto a evolução deste assunto, tanto em âmbito escolar, como social e político?
IA- A grande diferença que tem havido nos últimos anos é o facto de se falar mais sobre o assunto que acaba por estar mais presente, seja nos média, seja em atividade da escola. Também se sente esta evolução pela forma como valorizam a nossa associação. Hoje em dia já nos pedem muita ajuda, os média já têm muito mais interesse em nós e o reconhecimento que este é um problema relevante e que estamos a trabalhar para o tentar resolver. Apesar desta ser uma evolução positiva, ainda falta falar das soluções para o bullying. As pessoas estão presas aos castigos, às punições e às expulsões e não tanto à questão da reabilitação.
Nas escolas, tentou-se fazer isto com a disciplina da cidadania. A educação emocional e social são das coisas mais importantes que se pode ter, às vezes, mais do que as disciplinas que têm base de conhecimento. Realmente, é um trabalho que devia ser feito de forma sistemática em todos os níveis de ensino, mas é preciso as coisas mudarem muito para isso ser uma realidade nas escolas.
ME- O contexto atual propõe vários desafios, aliás, o bullying não acontece só nos corredores das escolas e escalou para o mundo digital. De que forma o cyberbullying se manifesta e como alertam os jovens para este perigo?
IA- O cyberbullying abrange aspetos diferentes. Podemos falar da questão das fotos íntimas que é um tema muito falado e pode ter consequências muito sérias. Já falei sobre este assunto com vários jovens, os mais pequenos acham absurdo, mas quando crescem acabam por ceder a certas pressões, às vezes porque querem, outras vezes porque alguém os convence. Ainda há muita culpabilização da vítima, normalmente são as raparigas que sofrem mais devido ao corpo feminino.
Estas fotografias podem existir dentro de uma relação de confiança e de respeito, o problema é quando quem recebe expõe essa mensagem e cria aquelas correntes onde a outra pessoa é completamente exposta. Aí, quem está mal, não é a pessoa que enviou, mas sim a pessoa que espalhou esses conteúdos. Junto da escola e dos próprios pais, é um mundo mesmo muito desconhecido e tudo o que seja a sexualidade é sempre muito complicado de gerir porque não querem aceitar que eles crescem e tornam-se pessoas com interesses sexuais. Mas é importante que exista um acompanhamento do processo, desde o início, por exemplo, quando lhes dão telemóveis, mostrando-lhes o que podem ou não fazer e quais são os perigos.
ME- Qual é o papel da No Bully, dos pais e professores na vida dos jovens, nomeadamente no aspeto cívico?
IA- Cada vez acredito mais no Exemplo, “faz o que eu faço”, mais ainda do que o transmitir da informação. Estamos constantemente a receber informações, do que devemos ou não fazer, mas acho que ver um exemplo positivo à nossa frente, seja dos pais, dos professores ou auxiliares, faz mais a diferença.
ME- Como é que os pais vêm que o seu filho está a ser vítima de bullying ou a praticar bullying?
IA- Os jovens alvo de bullying têm como principais sinais algumas alterações de comportamento, tais como mudanças no estado de espírito, deixam de comer ou estão sempre a comer, não conseguem dormir ou só querem dormir, ou seja, comportamentos extremos. Também as constantes dores de barriga e de cabeça sem explicação. Devido ao stress, tornam-se mais irritáveis, choram e ficam com raiva. Claro que o aparecimento de nódoas negras, arranhões e até o chegar a casa com coisas estragadas são sinais.
Em relação aos bullies, essencialmente, mostram mais agressividade, são cada vez mais impulsivos e não se mostram responsáveis pelas suas ações. Pode acontecer apresentarem comportamentos mais discriminatórios, como falar mal de pessoas pelas suas características. Este tipo de sinais, mostram que a criança não tem tolerância à diferença, nem tem tanto autocontrolo. Nestes casos, é importante perceber com a escola o que é que se tem passado e de que forma o comportamento da criança se tem alterado.
ME- Quais são as principais causas que levam um jovem a ter comportamentos violentos com um par?
IA- Há várias coisas que podem levar uma criança a fazer bullying, nem sempre são esses monstros horríveis que toda a gente fala. Há crianças que têm comportamentos, em geral, mais agressivos e mais impulsivos e que depois passam a praticar bullying. Estes comportamentos podem surgir de muita coisa, seja de problemas que tiveram na infância, o ambiente familiar, a forma como foram tratados por outras pessoas, os défices cognitivos ou qualquer coisa mesmo intrínseca à criança. Há milhares de razões, mas em geral qualquer pessoa pode fazer bullying, tem que ter apenas algumas condições que a levam a fazer isso e, muitas vezes, é uma questão também da pressão do grupo social.
ME- Como se realiza o processo de reabilitação, não só dos jovens que são vítimas, mas também dos próprios agressores?
IA- No que se refere ao bullie, a nossa metodologia passa por reunir os jovens envolvidos – normalmente, há um líder que tem seguidores a apoiar este comportamento – com pessoas que estão contra esta situação e que querem ajudar. Cria-se uma equipa com estes elementos, sem incluir o alvo, uma vez que, normalmente, está intimidado e inferiorizado. Procuramos conversar com eles, fazendo-lhes entender que esse comportamento está a fazer alguém sofrer. Esquecemos a parte de quem tem culpa porque, na verdade, isto não é um tribunal e não há uma necessidade de assumir culpas. Convidamos os jovens a propor de que forma querem ajudar, sem ser imposto. Decidem, por exemplo, que vão pedir desculpa e assim é, mas é uma decisão que foram eles a tomar, ou então podem simplesmente deixar de chatear, podem convidar para jogar, podem dizer “bom dia”, ajudar com os trabalhos de casa, ou seja, tudo é uma possibilidade e são os próprios jovens a saber o que é o mais adequado para a situação.
Esta é a parte mais importante de todas, a resposta ao bullying e o apoio ao alvo de bullying. A pessoa tem que se sentir acolhida e apoiada pelos adultos. Não convém sentir-se desacreditada, desrespeitada e desvalorizada pelos adultos, enquanto também está a ser maltratada pelos colegas. O primeiro passo, o mais importante de todos, ouvir, apoiar e dizer “estamos aqui, vamos resolver o problema”. Às vezes as pessoas esquecem-se do quão importante é esta parte e nós tentamos insistir mesmo muito nisso. Depois, é garantir que as coisas estão a correr bem, que já se sente melhor, que tem com quem estar, ou seja, que não está sempre sozinho e que os colegas já o respeitam mais. Tentar também perceber o que é que aquela criança precisa porque cada pessoa vai reagir de forma diferente. É importante também recorrer a psicólogos que possam dar um apoio mais a sério, mais especializado, e em casa também fazer esse acompanhamento e estar presente.
ME- Para este ano letivo 2022/2023, quais são projetos que têm em vista?
IA- No âmbito do Dia Mundial de Combate ao Bullying, fomos no dia 17 a duas rádios e no dia 24 de outubro vamos à RTP apresentar o livro contra o bullying que vamos lançar, com o título “O bullying termina aqui – o teu diário de superação”. É da autoria da No Bully Portugal em conjunto com a escritora Marta Curto, que tem experiência em exercícios de escrita criativa e foi ela a criar os exercícios. Nós criámos a estrutura, definimos os temas mais importantes e o objetivo é fazer com que as crianças e jovens reflitam sobre o assunto através da realização dos exercícios sobre a vida, a escola, a família, os amigos. Passa também por lhes dar alguma força.
Para além disso, vamos aproveitar as doações do ano passado para fazer o nosso programa em mais escolas. Estamos a começar este ano em escolas novas no Porto, Lisboa e Santarém. Durante esta semana, também vamos lançar um novo projeto, em parceria com o ActivoBank, que durante este ano vão debruçar-se sobre o cyberbullying, e que trata desta questão nas universidades, no âmbito das redes sociais e das escolas em si.