Entrevista | Elvira Fortunato, Ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior
As questões são inúmeras: Sistema de Acesso ao Ensino Superior. Alojamento estudantil. Financiamento das Instituições. Apoio à saúde mental. Paridade de género. Transição digital. Centros de Conhecimento e de Investigação. Desafios futuros.
Em entrevista, Elvira Fortunato, Ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, revela as expectativas para o Ensino Superior nas próximas décadas, reforçando que o modelo de ensino atual e conservador deve sofrer reformas estruturantes.
Foi no dia 23 de março do ano passado que se estreou na governação como Ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior no XXIII Governo, sem qualquer filiação partidária. O exercício político exige o mesmo rigor e a exata transparência do universo científico?
O rigor, a transparência e, acrescento, a honestidade são fundamentais para desempenhar a função que ocupo neste momento. Quando aceitei o convite para ser Ministra, fi-lo com um sentido de missão e com a noção clara de que estou a servir, mas também a representar uma franja bastante significativa e relevante da população portuguesa. Sou investigadora, professora e desempenhei funções de Gestão numa Instituição de Ensino Superior (IES). Assim, estou aqui para apoiar e melhorar as condições de todos aqueles que fazem parte da comunidade académica e científica à qual pertenço, com base em princípios basilares como a retidão.
É uma prioridade fortalecer as Instituições num quadro de estabilidade e autonomia. Que iniciativas estão planeadas para responder aos desafios que o Ensino Superior enfrenta?
Neste momento, decorre um processo de avaliação do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), levado a cabo por uma Comissão de Avaliação Independente, presidida pelo Professor Alberto Amaral, que fortalecerá as IES e de I&D num quadro de estabilidade e autonomia, através de uma reflexão participada e aprofundada acerca do enquadramento legal e organizacional dos estabelecimentos universitários e dos modos de promover uma maior participação e comunicação dentro das IES e entre estas e as comunidades nas quais se inserem.
O financiamento é outro ponto crucial. Por esse motivo, reforçámos o orçamento para o Ensino Superior e Ciência em 4,7% face a 2022 e acompanhamos atentamente o impacto da inflação na atividade das Instituições, atuando sempre de modo a manter a constância orçamental. Quanto mais fortes, dinâmicas, estáveis, autónomas e adaptativas forem as Instituições de Ensino Superior, melhor será o conhecimento desenvolvido, melhor será a qualificação da população e melhores condições terão as coletividades.
Segundo o novo Sistema de Acesso ao Ensino Superior, que entrará em vigor no ano letivo de 2025/2026, os exames nacionais para a conclusão do Ensino Secundário mantêm-se, mas com um peso mais baixo na classificação final. Que fragilidades pretende colmatar esta recente proposta?
No contexto da conclusão dos cursos científico-humanísticos do Ensino Secundário, o peso dos exames nacionais é reduzido na classificação final, sendo fixado em 25%, valorizando o percurso realizado. Paralelamente, para os estudantes que se candidatam ao Ensino Superior, é aumentado o peso mínimo das provas de ingresso, de 35% para 45%, com o objetivo de reforçar a equidade e a comparabilidade dos trajetos formativos e de retirar impacto a fenómenos de inflação de classificações internas que têm vindo a ser registados, não tendo qualquer efeito no número de candidatos, uma vez que se traduz apenas num efeito de seriação.
Por outro lado, o número mínimo de provas de ingresso aumentará de 1 para 2, procurando-se, assim, evitar colocar demasiada carga num só elemento de avaliação e permitindo uma análise mais robusta do potencial relativo.
A par das alterações às provas de ingresso e à fórmula de cálculo das médias de candidatura, a integração de um contingente prioritário direcionado aos alunos provenientes de meios desfavorecidos é uma das principais novidades. Esta é uma medida que procura promover o acesso equitativo e a igualdade de oportunidades?
Importa ter presente que, apesar de as oportunidades sociais de participação no Ensino Superior serem hoje incomparavelmente melhores do que nas últimas décadas, continuam a verificar-se diferenças expressivas entre as origens socioeconómicas dos inscritos e diplomados, sendo que as desigualdades já não estão associadas à impossibilidade de acesso, mas às dificuldades de aceder às Instituições e a cursos mais competitivos.
Revela-se, por isso, necessário criar mecanismos que garantam que as desvantagens económicas e de contexto social não sejam motores penalizantes. Neste sentido, o contingente prioritário é realmente inovador, tendo sido disponibilizadas 2038 vagas para estudantes beneficiários de Ação Social Escolar, inicialmente previstas apenas para os integrados em unidades orgânicas de Territórios Educativos de Intervenção Prioritária.
Apesar do caráter voluntário, todas as IES Públicas manifestaram a sua adesão já este ano, o que demonstra o relevante consenso existente no setor sobre esta matéria e a importância que é atribuída a este novo mecanismo de equidade social.
O aumento exponencial dos preços de alojamento no mercado tem obrigado milhares de estudantes deslocados a viverem em situações precárias e tem excluído tantos outros da entrada e frequência no Ensino Superior. A construção de 18.000 camas está prevista até 2026. E até aí? Quais são os apoios extraordinários disponíveis?
Serão construídas e renovadas mais de 18.000 camas, o que corresponde a um reforço de 78% na capacidade atualmente instalada no sistema. O Governo decidiu reforçar a dotação inicial, no âmbito da reprogramação do PRR, de modo a financiar todas as candidaturas aprovadas e a garantir a disponibilização da totalidade das camas, num investimento previsto de 447 milhões de euros.
Mas o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior nunca foi indiferente à situação financeira das famílias e dos estudantes que têm de deixar a sua área de residência para irem estudar. Nesse sentido, aumentámos os complementos de alojamento, de modo a que estes reflitam a evolução dos custos de arrendamento suportados pelos que necessitam de recorrer ao privado para frequentar o Ensino Superior. Este apoio extraordinário das Bolsas do Ensino Superior foi de 10% para todos os bolseiros e de 50% nas Bolsas dos Estudantes Carenciados para realizar períodos de mobilidade Erasmus.
Adicionalmente, criámos um novo acréscimo à Bolsa de Estudo, com um valor máximo de 250 euros anuais, para auxiliar as deslocações dos bolseiros entre as localidades da sua residência habitual e as localidades das IES. Durante 2022/2023, foi também aprovada uma medida específica para suportar os custos de alojamento a todos os transpostos provenientes de agregados familiares que recebam o salário mínimo nacional.
Temos vindo, ainda, a proceder à contratualização de todos os acordos ao abrigo do Plano Nacional de Alojamento no Ensino Superior, para acelerar o aumento da oferta a preços acessíveis.
Sabemos que este é um problema, cuja resolução não surge de um dia para o outro. Mas, orientados pelo compromisso, tudo temos feito para que no próximo ano letivo consigamos mitigá-lo ainda mais.
“Continuam a verificar-se diferenças expressivas entre as origens socioeconómicas dos inscritos e diplomados, sendo que as desigualdades já não estão associadas à impossibilidade de acesso, mas às dificuldades de aceder às Instituições e cursos mais competitivos.”
O reforço do suporte à saúde mental nos estabelecimentos de Ensino Superior, sobretudo através do apoio psicológico, é um fator crucial para um ambiente académico equilibrado. Quais são os contornos do Programa de Apoio à Saúde Mental no Ensino Superior?
Esta é uma questão que muito nos preocupa. Temos vindo a trabalhar com o Ministério da Saúde e com os Assuntos Parlamentares, dada a sua intervenção na área da Juventude e Desporto, na elaboração de um programa de Promoção da Saúde Mental direcionado aos estudantes do Ensino Superior, pretendendo que as Instituições tenham respostas mais adequadas ao progressivo número de pedidos de apoio de uma forma transversal, no que respeita às áreas de desenvolvimento pessoal, social e profissional ao longo do percurso académico e na transição para o mercado de trabalho, favorecendo o espaço de integração e abertura à diversidade e ao crescimento.
A nossa intenção é, então, enquadrar este programa no Plano Nacional de Saúde Mental e contribuir para uma melhor articulação entre o Ensino Superior e as estruturas de saúde mental, nomeadamente na deteção precoce de situações mais graves do foro psiquiátrico que possam ser encaminhadas para os serviços especializados existentes no SNS.
O Governo ambiciona ser um exemplo internacional em termos de paridade de género na área da Ciência e Ensino Superior. Que mecanismos têm vindo a ser implementados neste sentido?
A igualdade de género é um dos desígnios de muitas estratégias e programas nacionais e europeus, contemplando um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável definidos pela ONU para a Agenda 2030. Em 2018, o Governo aprovou a Estratégia Nacional para a Igualdade e Não Discriminação 2018–2030 “Portugal + Igual”, que consagra a Igualdade e a Não Discriminação como condição para a construção de um futuro sustentável para o nosso país.
No que diz respeito à área governativa que tutelo, é de referir o Prémio Igualdade de Género no Ensino Superior, uma distinção de prestígio que instituímos através da DGES, no âmbito do Projeto GE-HEI – Igualdade de Género nas Instituições de Ensino Superior.
Será atribuído pela primeira vez em 2024, reconhecendo Unidades Orgânicas e/ou Instituições do Ensino Superior que adotem políticas, princípios e medidas concretas que se revelem práticas exemplares na promoção da igualdade de género no Ensino Superior, através da atribuição de um prémio no valor de 30 mil euros e ainda de duas menções honrosas no valor de 10 mil euros cada.
O Ministério, através da FCT, participa ainda no GENDERACTIONplus, um consórcio de 26 organizações, que engloba 21 países europeus e que visa impulsionar a igualdade de género na Investigação e Desenvolvimento no contexto do Espaço de Investigação Europeu (ERA).
Este é um tema que nunca sairá da minha agenda para esta legislatura.
“É imperativo construir um sistema de ensino que promova uma melhor pedagogia, um maior sucesso académico e que seja mais atrativo, reduzindo, assim, o abandono escolar. Um sistema baseado na confiança, onde se dá autonomia e se pede responsabilidade.”
Declara que o Modelo de Financiamento do Ensino Superior assenta numa fórmula que não está atualizada, prejudicando 15 estabelecimentos ao nível nacional. Que propostas coloca para a sua modernização?
É um objetivo retomar a aplicação de um Modelo de Financiamento que seja transparente, previsível e crie os estímulos corretos à atividade das Instituições. Prevemos, assim, que o Orçamento de Estado de 2024 já seja construído num novo Modelo de Financiamento, tendo como contributo fundamental o estudo da OCDE, divulgado no dia 19 de dezembro.
A definição dos aspetos concretos está agora em preparação, num trabalho técnico coordenado pelo Secretário de Estado do Ensino Superior em articulação com o Instituto de Gestão Financeira da Educação (IGeFE), a ser apresentado e discutido com as IES no segundo trimestre deste ano.
A indústria portuguesa encontra-se perante uma transição digital, onde as Universidades e os Centros de Conhecimento e de Investigação possuem um papel crucial. A relação aproximada Instituição vs. Empresa ainda é um fator a considerar?
Afirmaria que a relação aproximada Instituição vs. Empresa é e terá de ser um fator a considerar, uma vez que já não é possível falar de Ensino Superior e de Ciência sem falar de Empresas. Existe uma relação trilateral entre academia, comunidade científica e tecido empresarial e industrial, que há muito compreenderam que teriam de se adaptar a um mundo no qual as transformações ocorrem a um ritmo acelerado e que exigem a renovação da sua relevância na produção, disseminação e valorização do conhecimento e do seu papel decisivo no desenvolvimento individual e coletivo.
Os dados demonstram o caminho que as empresas têm realizado relativamente ao aumento de investimento na despesa de I&D e no número de pessoas afetas a atividades científicas, bem como algumas das oportunidades que se têm gerado para potenciar estas sinergias, quer por via dos Laboratórios Colaborativos, quer por via das Agendas Mobilizadoras e Verdes no contexto do PRR, quer, mais recentemente, através do concurso para atribuição de Bolsas de Doutoramento, no qual a FCT recebeu mais de 400 manifestações de interesse.
Temos, atualmente, um sistema académico, científico e tecnológico mais embrenhado no ecossistema empresarial e industrial, e isso deve-se à academia, aos investigadores e às empresas.
O mundo científico confronta-se com um período de mudança e, por conseguinte, o modelo de ensino conservador vai sofrer reformas estruturantes. Como é que perspetiva o Ensino Superior nas próximas décadas?
A visão que pretendo implementar é a de manter a trajetória positiva que fez com que Portugal tenha sido nas últimas duas décadas um dos países da OCDE, onde o aumento de qualificações superiores entre os 25 e os 34 anos foi mais expressivo. Para isso, é preciso aprofundar a oferta do Ensino Superior a uma base de recrutamento potencial mais diversa, quer em termos de composição social, quer em termos de formação e requalificação da população ativa.
Há que possuir um sistema científico menos burocratizado, com regras de execução financeira e de contratação pública simplificadas e adequadas ao contexto internacional e competitivo dos projetos desenvolvidos pelas IES, e aumentar o investimento no Ensino Superior e na Ciência para valores médios compatíveis com a nossa posição internacional, permitindo que Portugal se mantenha em convergência com os países com os quais se deve comparar.
É imperativo construir um sistema de ensino que promova uma melhor pedagogia, um maior sucesso académico e que seja mais atrativo, reduzindo, assim, o abandono escolar. Um sistema baseado na confiança, onde se dá autonomia e se pede responsabilidade. Um sistema, onde docentes e investigadores possam dedicar o seu tempo a investigar e não a realizar funções administrativas e financeiras, e onde a Gestão é feita por um corpo profissionalizado, experimentado e estabilizado.